Durante a quarentena, ouvi a seguinte observação: “Até agora, a melhor vacina para conter o contágio do Covid-19 foi feita pelos arquitetos: a casa.” Essa frase me deu uma esperança incrível, pois como arquiteta de casas sempre me preocupei com o quanto o local onde vivemos nos influencia de maneiras que nem imaginamos. Mas também sempre me deparei com a dificuldade dos clientes de perceber a importância dos ambientes além da estética e da funcionalidade.
Não que esses quesitos não sejam importantes e nem partes influentes na formação do espaço, mas sinto que a função de reconfortar os usuários do espaço é tão importante quanto, e muitas vezes ignorada ou deixada em segundo plano.
Hoje em dia, as pessoas são bombardeadas por uma quantidade tão esmagadora de informação que não sobra espaço nem oportunidade para emitirem a própria informação com a certeza de que serão ouvidas. Para se expressarem, é preciso que as ideias sejam expostas com rapidez e concisão. Assim, os outros, saturados de informação, não teriam tempo de perder o interesse. É exaustivo! Por conta disso, a solução mais óbvia é usar símbolos de rápida leitura que representem as ideias que ela quer passar e facilitem a identificação.
Como exemplo de símbolo, um tênis usado para praticar esporte facilmente identifica alguém dentro de um grupo específico de pessoas saudáveis e atléticas. Com o tempo, as pessoas foram percebendo que não era necessário praticar tal esporte para serem identificadas no grupo, poderiam apenas usar os símbolos. Entenderam que poderiam parecer ser o que quisessem sem que realmente o fossem e começaram a acumular símbolos para diferentes ocasiões.
CONFLITO DE VALOR E IDENTIDADE
Esses símbolos acabaram por criar uma fachada distante do corpo de sua identidade, deixando um espaço oco entre os dois. E, por não ter onde se estruturar, a fachada se torna frágil e inexpressiva, alienando e desvalorizando o interior verdadeiro.
O uso desses símbolos se tornou tão indiscriminado que as pessoas começaram a se confundir sobre o que realmente são e passaram a sofrer de um conflito interno de valor e identidade. Passaram a ter dúvidas sobre qual parte de si (a fachada ou o eu verdadeiro) merece maior investimento e qual delas é mais digna de amor.
Como arquiteta, um dos meus maiores desafios tem sido lidar com pessoas que pedem projetos de casa, e lidar com essa distância entre o interior verdadeiro e a fachada de símbolos usada para se identificarem. As pessoas chegam, não sem razão, confusas e inseguras, pois a casa tem que servir às duas partes: é tanto um símbolo social a ser apresentado aos outros quanto um abrigo acolhedor onde elas podem finalmente ser elas mesmas ao fim do dia.
Além disso, ao construir uma casa, as pessoas são obrigadas a reavaliar julgamentos de valores acerca de si próprias. Precisam ser realistas sobre quanto e onde podem e merecem gastar consigo. E isso pode ser conflituoso.
Ao reconhecermos o significado de cada símbolo utilizado pela pessoa, podemos separar a fachada do interior e organizar espacialmente o modo como esses símbolos podem se integrar ou se recolher em cada situação de uso dos espaços. Essa necessidade de integração/exposição e separação/reclusão em diferentes usos do espaço faz da flexibilidade da arquitetura um dos itens primordiais de um bom projeto.
A PANDEMIA COMO ALIADA DA PERCEPÇÃO
É imprescindível que o espaço possa acolher e fortalecer ambas as representações da pessoa. É através do contato direto com elas próprias que as pessoas podem se fortalecer e valorizar aquilo que são, podendo repaginar as fachadas com símbolos que reflitam com mais fidelidade, segurança e satisfação aquilo que elas são. Quando tem a possibilidade de viver numa arquitetura pensada nesse sentido, a pessoa pode desenvolver uma vida mais plena. É aí que a pandemia entra como forte aliada na correção da percepção que as pessoas têm da influência da arquitetura sobre si.
Tendo sido obrigados a se fechar em casa, muitos puderam entrar em contato com emoções e questões internas negligenciadas. Puderam perceber em suas casas estruturas e espaços que não funcionavam como o imaginado, que poderiam ser melhorados, que eram ignorados, que proporcionavam maior interação entre os habitantes ou que traziam algum conforto físico ou emocional. Dessa forma, ficou clara a importância do ambiente onde se mora.
Pessoas oprimidas por construções ditadas pela especulação imobiliária e livres para trabalhar e estudar à distância se viram procurando casas fora das cidades, com maior integração espacial entre o dentro e o fora, entre o construído e o natural, com maiores espaços e vistas mais amplas. Outras, sem essa possibilidade, fizeram da janela sua plataforma de troca e pertencimento à comunidade, cantando, protestando e socializando.
Há ainda um terceiro grupo, sem a opção de usar a arquitetura a seu favor para lidar com as feridas emocionais geradas pela ocasião. Muitos se sentem isolados e não conseguem entender por que.
A partir dessas vivências, acredito que a especulação imobiliária se dedique a promover nas cidades um retorno a uma arquitetura mais salubre e versátil.
Flávia Quintanilha é arquiteta.