Uma pesquisa sobre compartilhamento de mensagens em grupos masculinos de WhatsApp mostra que, mesmo com toda a pujança do movimento feminista nas últimas décadas, a maioria dos homens continua machista, misógino e preconceituoso – bem como fortemente cúmplices entre si.
Em breve, essa pesquisa vai virar livro. Intitulado Gênero em perspectiva, será lançado pelo Instituto Federal de Brasília. E com download gratuito. Quem assina a obra entende do assunto: Valeska Zanello, professora do departamento de psicologia clínica da Universidade de Brasília. Especialista em masculinidade, é dela também Saúde mental, gênero e dispositivos (Synopsis).
“Estudar a masculinidade a partir desses grupos é importante porque eles fazem parte do cotidiano masculino. É uma forma de tecnologia de gênero e um sintoma da nossa cultura”, analisa a autora.
Durante um período de dois a seis meses, seis homens “espiões” colaboraram com a pesquisa, enviando à professora cópias de mensagens compartilhadas nos grupos de WhatsApp masculinos dos quais eles participavam. O material incluía memes, piadas, pornografia e fotos de mulheres nuas.
Esses voluntários eram homens brancos e negros, de faixas etárias distintas, de diferentes estados brasileiros e de classes média e alta. A maioria era heterossexual. Eles se limitaram a apresentar o conteúdo compartilhado, sem identificar quem o postara. “Mesmo se dispondo a contribuir, eles tinham uma preocupação muito grande em não identificar os outros homens, existia uma proteção de ‘brother’”, observa Valeska.
A MULHER COMO OBJETO
De saída, a pesquisadora chegou a uma constatação: o silêncio cúmplice é um comportamento tipicamente masculino, porque os homens dependem da aprovação dos outros para construir sua masculinidade. “Os homens gostam de silenciar na ‘brotheragem’, na cumplicidade, enquanto as mulheres aprendem a silenciar para manter a relação”, compara ela.
A misoginia foi outro traço que logo saltou aos seus olhos, tanto de maneira mais explícita – em referências a feminicídios e discursos de ódio – quanto menos explícita, como em casos de objetificação sexual. “Eles transformam a mulher em bunda, peito, vagina”, diz ela. E quando um homem não interage com essas postagens de objetificação feminina, é chamado de gay.
Uma abordagem predominante identificada entre os homens é o que Valeska chama de “gordofobia”, algo que desumaniza as mulheres gordas. “Um exemplo são os memes de um homem que não ficou com ninguém até o fim de uma festa, quando se conformou em procurar uma gorda. Em outro meme, a gorda explode durante a relação sexual”, conta ela. “As gordas são vistas como a última opção na falta de opção. Só servem para transar”, interpreta a pesquisadora.
Uma segunda categoria de preconceito envolve o racismo. Nas mensagens, mulheres negras ligadas às classes mais populares são tidas como “barangas” ou motivo de riso. E uma terceira categoria identificada é o “etarismo”, um horror à velhice. “Muitas mensagens enfatizavam a ideia de que a mulher velha não é desejável, elas são vistas como motivo de piada”, relata a professora.
A objetificação se estende a mulheres que ocupam cargos de poder. Aquelas que estão na política e dentro de um padrão estético desejável viram objetos sexuais. Ou passam a ser execradas por feiura, obesidade, raça ou faixa etária.
FORMAS DE REDUZIR O MACHISMO
Temas como a preservação do meio ambiente, massacres de índios, consciência negra e conscientização sobre o câncer de mama também entram na seara dos homens. Mas são abordados em memes, com mulheres nuas associadas a frases ligadas a esses assuntos.
Depois de décadas pesquisando os motivos pelos quais homens e mulheres usam xingamentos diferentes, Valeska identificou o palavrão “veado” como um dos mais frequentes entre os homens. “Parece homofobia, mas é misoginia, porque o gay é entendido como ‘mulherzinha’, diz ela.
Outra característica identificada pela pesquisadora é descrita como uma impossibilidade de os homens renunciarem ao desejo sexual, o que levaria a reações descontroladas e antiéticas, embora desculpáveis e até risíveis. “A ideia de que quando o homem tem chance de fazer sexo ele fica fora de si é uma construção cultural muito comum, que leva até ao estupro dentro do casamento”, comenta ela.
Do alto de sua experiência, Valeska sugere uma solução para reduzir esse atávico machismo masculino: “É totalmente possível mudar. Para isso são necessárias políticas públicas de intervenção”, propõe. “É preciso trabalhar nas escolas essa masculinidade impregnada de misoginia.”