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A vingança dos objetos depois da partida

Imaginava que seria fácil. Ele já estava doente havia muito tempo, imerso em uma quase escuridão.

Faltava um nada para que soltasse a pipa, alma de papel, que voaria ao infinito, enquanto os enfermeiros cuidariam do peso morto. Quantas foram as vezes em que ela refez a teoria da “pipa” para ensaiar a partida e estar pronta no dia em que se levantasse para o adeus. Só que não existe ensaio para a despedida, e o dia chegou de repente. Sempre é de repente quando se morre.

Ela suportou os primeiros momentos da partida com poucas lágrimas equilibradas e repetia o bom senso da conversa formal de que “foi melhor assim”, “já estava cansado”, “está em um lugar melhor”. Estava a ponto de acreditar em tudo quando, passando pela área onde ficam a máquina de lavar e o tanque, deu de cara com um par de chinelos e um par de tênis. O chinelo ele usava desde que ficou doente, sempre de meia; o tênis era o que tinha comprado há tempos, e exibia o conforto – “Muito confortável, foi caro, mas valeu a pena.”

A voz distante ecoava pelos cômodos, era tridimensional a lembrança sonora. Tudo porque ela bateu os olhos naqueles calçados vazios – teria coragem de se desfazer deles algum dia? Por que não pediu que as cuidadoras os levassem? Era tanta coisa de que precisaria se livrar. A vingança dos objetos era só o começo. Quem disse que seria fácil?

Ensaiar o voo da pipa da alma não lhe serviu de nada.

Desviou com força o olhar dos calçados e foi para dentro. Apagou a luz daquela parte da casa. Melhor assim. Ia passando pelo corredor para ir direto ao seu quarto, que ficava nos fundos, mas não resistiu e entrou no quarto do meio: o dele.

Acendeu a meia luz do abajur e, na mesa, deu de cara com a fileira dos remédios, a carteira, os óculos, o celular… Os objetos organizavam a vingança imprevisível – a dor maior é ver o que se deixou, o material de uma existência, a parte âncora de um barco que partiu. Foi então que desabou e chorou, sozinha, naquele quarto semiapagado, tudo o que não havia chorado em público. A cada novo objeto que encontrava na estante ou dentro das gavetas ela renovava o choro eterno. A vingança dos objetos era cruel.

Ficou ali durante horas. Até que conseguiu se desprender da proa e saiu do quarto – era preciso deixar naufragarem os objetos, ela não poderia guardar aqueles restos que doíam. Apagou a luz, mais um cômodo escuro na casa. Foi para seu quarto sem coragem de acender a luz e deparar com mais algum objeto vingativo. Ficou no escuro, elevou o pensamento na tentativa de se lembrar da pipa, alma de papel, em seu voo silencioso, leve e desancorado.

Claudia Nina, escritora, jornalista e crítica literária.

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