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O poder de decisão sob ameaça das redes sociais

Se alguém já desconfiava da capacidade de manipulação das redes sociais, poderá ter certeza ao assistir a O dilema das redes. Dirigido pelo americano Jeff Orlowski e exibido na Netflix, o documentário é um grito de alerta para o que as pessoas estão se tornando ou podendo se tornar por influência dessa mídia: uma legião de seres humanos cujo poder de decisão vem se perdendo.

Impressiona a constatação de que, ao longo dos 89 minutos do filme, esse alerta seja dado por pessoas que participaram ativamente do mecanismo das redes sociais: ex-funcionários de grandes plataformas como Google, Facebook, Twitter e YouTube. Todos eles demonstram preocupação com um processo de dominação da natureza humana pelo que eles próprios chamam de chupetas digitais.

O que os motiva a expor suas opiniões são estudos que mostram como as mídias sociais afetam a saúde mental, viciam milhares de pessoas, sobretudo crianças, e têm impacto sobre casos de depressão e suicídio. Será tão grave assim?

Ex-funcionário do Google, onde atuou como especialista em ética de design, Tristan Harris teria sido um dos primeiros a perceber que “a tecnologia deixou de ter o papel de ferramenta para se tornar um vício e um meio de manipulação”. Por conta disso, ele tem sido chamado de “a voz da consciência do Vale do Silício”.

“A tecnologia não é uma ameaça existencial, e sim sua capacidade de trazer à tona o pior da sociedade. E o pior da sociedade é uma ameaça existencial”, argumenta Harris, hoje presidente do Center for Humane Technlogy, que ajudou a criar.

Essa ameaça, diz ele, manifesta-se em atitudes de indignação, invisibilidade, falta de confiança no outro, solidão, alienação, falta de iniciativa, polarização, manipulação eleitoral, ataque à democracia, crescimento do populismo e incapacidade de abordar problemas reais. “Nós nos aproximamos de uma sociedade de zumbis em estado de caos, Frankensteins digitais”, define ele.

A ideia é de que saímos da era da informação para entrar na era da desinformação. E de que vivemos o capitalismo da vigilância.

 

DADOS SOBRE O USUÁRIO EM CADA CLIQUE

Um dos precursores da realidade virtual, o cientista de computação Jaron Lanier aconselha as pessoas a não se acomodar às escolhas dos algoritmos em situações prosaicas como a música a ser ouvida no YouTube. “Criamos uma geração global que cresce num contexto em que o significado da comunicação e da cultura está atrelado à manipulação sorrateira de tudo o que fazemos”, diz ele, autor do livro Dez argumentos para deletar agora suas redes sociais (Intrínseca).

O documentário ilustra os depoimentos de especialistas com imagens de uma família fictícia em que o pai e os três filhos são viciados em celular. A mãe tenta sem sucesso dar um choque de consciência geral neles. Antes de iniciar uma refeição, ela pede a todos que deixem seus celulares numa caixa lacrada. O resultado disso não é, porém, uma boa conversa à mesa, e sim um desconforto tamanho, a ponto de a filha se levantar e quebrar a caixa onde estão os aparelhos.

Professora de administração da Harvard Business School aposentada, com PhD em psicologia social, Shoshana Zuboff afirma no filme que as redes sociais “vendem a certeza, e para isso são necessários muitos dados”. Esses dados, explica, são cada clique dado pelo usuário, abrindo espaço à sua total monitoração.

“É um novo tipo de mercado, que nunca existiu antes. Negocia o futuro do ser humano em larga escala, como os mercados negociam o petróleo futuro”, descreve a psicóloga. “Tudo isso produz trilhões de dólares e tornou as empresas de internet as mais ricas da história da humanidade.”

Zuboff compara os seres humanos a ratos de laboratório, usados não para a busca da cura do câncer, mas para verem cada vez mais anúncios e aumentarem o lucro em experimentos de contágio em larga escala. “É possível afetar emoções e comportamentos no mundo real sem que as pessoas tenham sequer consciência disso”, diz ela.

Para Anna Lembke, médica com formação em ciências humanas, a mídia social age como uma droga: “Temos uma necessidade biológica de nos conectar aos outros, e isso afeta diretamente a liberação de dopamina como recompensa. As redes otimizam a conexão entre as pessoas com potencial viciante.”

Os especialistas ouvidos no documentário apontam para a necessidade de reverter a manipulação das redes sociais. “Nós criamos tudo isso, é nossa responsabilidade mudar”, diz Harris. Lanier afirma que a motivação para essa reversão pode ser o objetivo de tornar o mundo melhor. “Na história, sempre houve mudanças para melhor. Alguém pode dizer, tudo isso é idiotice. Podemos melhorar.”

Celina Côrtes é jornalista, escritora e mantém o blog Sair da Inércia.

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