“Ando telefonando em vez de digitar mensagens. Ando lendo livros que já li. Ando doando roupas que não uso mais. Ando vestindo as mesmas camisetas. Ando matutando tanto. São muitas vozes me chamando dentro do silêncio, e eu, alerta como nunca, ando me escutando”. O trecho da crônica da escritora Marta Medeiros, publicada no Globo, descreve efeitos da quarentena. O isolamento deflagrou uma onda de despojamento pessoal, visível sobretudo nas mulheres – em “coisas que me liberaram de uma escravidão, que não eram tão importantes assim”, como define a terapeuta Maria Borges (nome fictício).
Maria diz que já vivia uma tendência a deixar o cabelo branquear e a parar de fazer as unhas e se depilar. Mesmo irritada com a dependência de tingir o cabelo a cada dez dias para manter um tom castanho, ela acabava adiando a decisão. A quarentena foi o pontapé que faltava. Ela mesma começou a cortar o cabelo mais curto, abrindo espaço às raízes brancas que passaram a dominar o couro cabeludo. Parou de ir à manicure, passou a cuidar pessoalmente das unhas e deixou de lado a depilação. Essa última decisão, afirma, vai durar até poder voltar à praia, sua paixão. E, para completar, ela se tornará avó em outubro. “Ficarei melhor como uma vovó de cabelos brancos”, diverte-se.
O salão de beleza Hair Nation, no Rio de Janeiro, registrou uma queda de 30% no movimento de mulheres que pintam cabelo. “Muita gente já queria, mas se incomodava quando começava a aparecer a raiz branca em contraste com os fios pintados. Com a quarentena, essa raiz chegou a cinco centímetros, o suficiente para a tomada de decisão. Isso ajudou as clientes a deixarem de se preocupar com essas coisas”, avalia Ricardo Souza, dono do salão.
Em relação às unhas a debandada foi ainda maior, e comparada ao que aconteceu nos anos 1980, quando começou a epidemia de Aids. “As mulheres que faziam as unhas na manicure simplesmente sumiram. Na época da Aids também foi assim, o movimento só voltou quando surgiram autoclaves para desinfetar os equipamentos”, lembra Ricardo. Já em relação à depilação, ele tem se surpreendido com a firme procura, o que atribui, com bom humor, à “melhor preservação do parque de diversões”. Ou seja, são mulheres que não se preocupam com a exposição ao sol, e sim com a intimidade com os parceiros, mais disponíveis em tempos de isolamento.
LIBERTAÇÃO DE DESEJOS QUE ESTAVAM APRISIONADOS
As atitudes de relaxamento nos cuidados com a aparência lembram os hippies, que nos anos 1960 e 1970 tinham no despojamento praticamente uma palavra de ordem. Mulheres deixavam o cabelos longo e desgrenhado e ostentavam tufos sob as axilas e pernas peludas. A tendência tinha motivações de contracultura e atravessou fronteiras embalada na tríade sexo, drogas e rock and roll. O amor livre e à natureza também entravam no pacote.
A toda ação corresponde uma reação. Os bichos-grilos foram substituídos pelas patricinhas e mauricinhos do movimento yuppie, iniciado na década de 1980 sob o embalo dos Young Urb Professionals (Jovens Profissionais Urbanos). Eram pessoas com idade entre 20 e 40 anos, de classe média e alta, que prezavam sobretudo os valores materiais.
Para a antropóloga Mirian Goldenberg, é impossível ocorrerem mudanças estruturais no atual período de isolamento social. “Valores não mudam tão rápido. O que está acontecendo são mulheres que passaram a botar para fora aspectos que estavam aprisionados”, afirma ela. Mirian não relaciona as atitudes de deixar de pintar cabelo, fazer unhas e se depilar a futilidades, e sim ao desejo. “A quarentena funciona como um acelerador da simplificação da vida, não chega a configurar um movimento”, analisa.
A antropóloga enxerga, contudo, um movimento em seu livro Liberdade, felicidade e foda-se! (Planeta), lançado no ano passado. Com base em pesquisas, ela encontrou mulheres mais felizes por conseguirem simplificar a vida “e sair de tudo o que nos obrigam a fazer”.
