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Quando o luto pode ser doce

No início do nosso namoro, a Regina criou uma música para mim. Ela cantava a música em nossos momentos e foi assim durante décadas. Ninguém conhece a música, nem os nossos filhos. A música era algo puro, nascida e concebida a partir do nosso amor. Ela denuncia a ingenuidade e a pureza no início do nosso relacionamento, repleto de sonhos, paixão e amor eterno. Essa música ainda me provoca muita emoção até hoje.

Na última década, a música foi sendo cantada mais raramente, evidenciando que estávamos mais velhos, maduros, com amor consolidado e menos juvenil. Talvez a rudeza da vida cause esse tipo de comportamento, por perdermos a ingenuidade e a candura, não sei dizer ao certo. Mas a música nunca foi esquecida, sempre esteve conosco.

Janeiro de 2017 foi o mês da descoberta do câncer da Regina e foi algo devastador. A doença foi descoberta em estágio avançado. Somente por meio de cirurgias complexas a Regina poderia ter possibilidade de obter uma sobrevida, mesmo assim com poucas chances de sucesso. A decisão pela primeira cirurgia foi tomada às pressas, como um bote salva-vidas jogado em alto-mar, no meio de uma tempestade. Era preciso realizá-la rapidamente para interromper a disseminação da doença e permitir algum tratamento.

Lembro da noite de véspera da primeira cirurgia, quando ainda não tínhamos clareza e dimensão do que estávamos passando. A Regina estava sentada na poltrona do quarto do hospital, vestida com uma camisola de internação, recebendo uma aplicação intravenosa de medicamento em seu braço esquerdo, que gotejava lentamente. Estávamos em silêncio, nos olhando sem dizer uma palavra. Lembro que eu estava com medo… com muito medo. Aquilo que vivíamos não era ficção, muito menos era um sonho. No dia seguinte, a minha amada passaria por uma cirurgia supercomplexa, repleta de riscos e sem termos clareza do resultado. Na minha cabeça surgia a possibilidade de perdê-la para sempre. Eu não tinha ideia do que se passava na cabeça dela.

Em determinado momento, encostei minha cabeça no ombro dela e falei alguma coisa que não lembro. Aquele meu movimento interrompeu o silêncio. Iniciamos uma conversa longa. Conversamos sobre nós, falamos sobre amor, agradeci por tudo que vivemos juntos e por tudo que ainda iríamos viver. Falamos sobre medo, esperança, superação, renovei minha promessa de cuidar dela para sempre, independentemente do que acontecesse. Acho que ali, naquele momento, sozinhos no quarto do hospital, nos casamos mais uma vez.

De repente, espontaneamente, a Regina começou a cantar a minha música. Sorrimos um para o outro. A nossa vida inteira passou pela minha cabeça. O nosso sorriso, ao longo da música, transformou-se em lágrimas. Nos permitimos chorar. Inconscientemente, ali, eu estava pensando que aquela poderia ser a última vez que estaria vendo a Regina cantando a música para mim. Em um reflexo imediato, peguei o meu celular e pedi para ela cantar de novo. Apertei o botão de gravar e guardei aquele momento para sempre. O vídeo está comigo. O vídeo de um minuto, gravado no quarto do hospital, é o fragmento de um dos momentos mais intensos da vida com a minha amada, é emocionante e perturbador. O vídeo é tão singelo e poderoso, que é até difícil dimensionar tudo que ele representa e provoca dentro de mim.

Aquele momento inesquecível me ensinou algumas coisas, que foram ficando mais claras ao longo dos anos seguintes, durante o tratamento do câncer da minha amada, culminando com a sua partida em 28 de fevereiro de 2020.

Aquele momento da canção foi um momento colorido no meio do cinza intenso de racionalidade, frieza e medo. A doença parecia ter nos colocado no meio de uma floresta fria, desconhecida e escura. Eu sabia que estávamos entrando em um território desconhecido, repleto de incertezas, que mudaria radicalmente as nossas vidas, muito além do próprio câncer.

Quando a Regina estava sendo operada, passando pela sua primeira longa cirurgia, eu fiquei sozinho no quarto. Foram longas horas de espera. As luzes estavam apagadas. Era manhã e o sol forte entrava pela janela, iluminando a cama hospitalar. A luz do sol e o céu intensamente azul, contrastando com o ambiente escuro, me fizeram pensar em como deveríamos conduzir as nossas vidas perante o câncer.

A floresta escura diante da gente somente poderia ser atravessada com luz. E essa luz teria que ser absorvida e irradiada por nós. A forma como iríamos encarar a nossa nova realidade dependia exclusivamente da gente, das nossas reações e atitudes. E o momento íntimo da canção que vivemos na véspera era a melhor representação de como deveríamos enfrentar o futuro diante de nós: com leveza, doçura, alegria, fé e esperança. Tudo isso envolvido por transparência e cumplicidade.

Ficava claro, para mim, que eu precisava ser frio e racional em relação ao câncer, mas também precisava ser sensível, amoroso, envolvente, doce e carinhoso com a minha amada, fazendo com que cada dia à frente fosse um dia iluminado. Então comecei a arquitetar algumas coisas.

Tudo do câncer dela deveria ficar comigo. Eu cuidaria de tudo, e para ela somente amor, carinho e coisas boas. Para viabilizar isso, eu certamente aprenderia e consumiria tudo de conteúdo em relação ao tratamento dela, mas ao mesmo tempo não permitiria que a minha alma se tornasse dura, insensível e impenetrável. Em vez de me fechar e criar cascas, eu tinha que ser poroso, flexível e adaptável. Talvez a palavra para isso seja uma palavra da moda: resiliência.

Em vez de nos afastarmos das pessoas, a gente deveria trazer as pessoas para perto de nós. Em vez de evitarmos falar sobre a nossa realidade, deveríamos ser abertos e transparentes, genuínos e honestos, conosco e com os outros. E foi assim que aconteceu ao longo de todo o tratamento dela, logo depois da primeira cirurgia, que foi considerada um sucesso e fundamental para a sobrevida da minha amada.

Por instinto, passei a consumir mais música, poesia e histórias de pessoas, como um contrabalanço à massacrante rotina de consultas, exames, medicamentos e internações. Me tornei um melhor ouvinte, menos impulsivo, aprendendo a controlar melhor a ansiedade. Passei a ficar mais atento aos bons e simples momentos da vida, que me ensinaram como melhor abrandar o rancor, consequência natural da realidade que vivíamos e do destino à nossa frente. Desenvolvemos nossa espiritualidade.

Esse comportamento pessoal tomou os anos seguintes. Acho que me tornei mais humano, por mais que essa afirmação soe estranha. A jornada do câncer é perigosa, porque nos leva por caminhos difíceis, ao lado de abismos imensos, nos tornando seres rancorosos, desesperançosos, secos e frios. Sem sentir, corremos o risco de nos transformar em pedras de gelo.

Acho que nunca senti tanto amor pela Regina como nos últimos anos. Ao longo de sua doença, fiquei perto dela o tempo todo, de corpo e alma. Estávamos sempre juntos, sorrindo, com alegria de viver e agradecidos pelo que recebíamos. O nosso amor era algo mágico e sublime, pelo menos esse foi o meu sentimento. Acho que ela também sentia isso e retribuía o quanto de amor recebia e sentia por mim. Falávamos sobre isso quase todos os dias. Era alimento e remédio, especialmente diante de tantas dificuldades e percalços.

O meu coração, cada vez mais doce e sensível, se aproximou da poesia. Passei a ler e colecionar histórias. Isso foi fundamental durante todo o tratamento dela. E, depois da partida da Regina, as histórias e poemas fizeram (e continuam fazendo) o meu luto ficar mais doce, ganhar cores, amenizando a dor, acalmando a alma e me fazendo sorrir.

Um trecho de “Quando a dor se transforma em poesia”, de Rubens Alves, representa fielmente o que venho sentindo desde a partida da Regina, que gera um conflito enorme na minha cabeça.

Escrevo como sonâmbulo, na esperança, talvez, de que as palavras consigam diminuir a minha dor. Mas eu não quero que a dor diminua. Não quero ser consolado. Não quero ficar alegre de novo. Quando a dor diminui é porque o esquecimento já fez o seu trabalho. Mas eu não quero esquecer. O amor não suporta o esquecimento.

O amor não suporta o esquecimento. Essa frase me soa muito forte e resume o dilema na minha mente: eu não quero esquecer a Regina. E, quando começo a esquecer, me penalizo. Por isso penso recorrentemente nela, como uma roda sem fim. Essa sensação já foi muito mais intensa nos primeiros meses de sua partida, porque eu me obrigava a pensar nela o tempo todo, mas hoje essa fase já passou.

O poema “O que a memória ama, fica eterno”, de Adélia Prado e Fabíola Simões, diz que pequenos momentos do cotidiano despertam a nossa memória e nos fazem voltar ao passado, lembrando as pessoas amadas. Eu sinto isso todos os dias. Pequenos fatos do cotidiano me fazem lembrar a Regina a todo momento.

Já “Minha alma está em brisa”, de Mário de Andrade, remete ao meu momento dos 60 anos, que, aliados à partida da Regina, me fazem repensar profundamente sobre o que eu quero da vida a partir de agora. A sensação é que não quero perder tempo, muito menos esperar o futuro. O que vale é o presente.

No dia 10 de setembro de 2018, uma segunda-feira de trabalho, eu estava inconformado por conta do tratamento da Regina. A doença havia voltado alguns meses antes, de forma massacrante, e avançava, sem piedade, mesmo com as sessões de quimio e novos remédios. Eu estava no escritório do trabalho, sem conseguir me concentrar e atordoado com tudo.

Lembro de me passar pela cabeça a possibilidade da morte da minha amada, se eu suportaria tudo aquilo e como seria o meu futuro sem ela. A minha cabeça era um turbilhão. Abri o Instagram e me deparei com um poema de Flavia Apocalypse, “Pise na grama”.

Ei, você.
Acho que não ouviu
Eu disse: pise.
Pise na grama.
Esqueça a placa.
Siga o contrário.
Por favor, pise na grama.
Não pare, pise.
Não desvie, sinta.
Se possível, pise descalço.
Se pirar, corra.
Se gostar, sente.
Se der vontade, deite.
É isso, deite na grama.
E olhe pro céu.

Esse poema me tocou profundamente. Li e reli muitas vezes. A ordem era clara: pegue as rédeas de sua vida, ela está em suas mãos, depende apenas de você, transgrida, não fique preso às regras, não se acomode, faça a sua existência valer a pena, usufrua o que a vida lhe oferece, não se lamente, aproveite o máximo que puder, mesmo que sejam momentos simples e efêmeros. Sorva tudo que a vida oferece, até a última gota.

Foi ali, nas leituras e releituras desse poema, que decidi que eu precisava mudar a direção das coisas. Foi a primeira vez que me passou na cabeça que eu deveria jogar tudo para o alto, sair do emprego e viver exclusivamente para a minha amada, dedicando a minha vida para o restante de sua existência. Ali eu vi que eu precisava “esquecer as placas e pisar na grama”.

Convivi com esse pensamento ao longo do tempo, amadurecendo as ideias e conectando as coisas. Até que, seis meses depois, quando eu trabalhava em casa, ocorreu uma situação cotidiana que muda mais uma vez a direção das coisas. Eu estava trabalhando em casa via videoconferência, em uma reunião muito difícil e tensa, quando a Regina entrou inesperadamente no meu escritório trazendo, de surpresa, uma xícara de café com leite, para me tranquilizar. Ela estava doente, mas ali era ela que cuidava de mim. Naquele instante, pensei: agora é a hora de pisar na grama.

Desde então, ao longo do tratamento da minha amada, passando pela sua partida, vivendo o luto, repensando a minha vida, escuto uma voz dentro de mim que fala: “Pise na grama”. Todos os dias essa voz aparece.

Apesar de tudo que contei aqui, da minha busca por adoçar o luto, confesso que não tem sido fácil. Muitas vezes, a solidão que sinto é massacrante. As noites são longas e ainda me perturbam. É quando sinto mais falta da minha amada. O luto é uma estrada espessa, difícil de ser trilhada, com clara dependência de nós mesmos, de arrancarmos algo de dentro da gente que nos leva para a frente. Por isso é preciso provocar estímulos e encontrar meios diferentes para buscar essas forças que, muitas vezes, nem sabemos que temos. É muito simples culpar o destino, se sentir vítima e reclamar da vida. A iniciativa pessoal de não aceitar a passividade é importante. Abrandar o amargor inevitável tem sido fundamental na minha jornada.

No meio disso tudo, sou capaz de imaginar a Regina do meu lado falando: “Deixa de ser bobo. Você está com uma vida inteira pela frente. Está com saúde, liberdade, preparado para enfrentar qualquer coisa e ir para onde quiser. Levanta da cadeira e vai viver. Aproveita.”

Pois é isso. Como não sou bobo, trato de atender ao pedido dela. Todos os dias, levanto da cadeira e cuido de viver. Fazer a vida valer a pena.

Essa minha atual fase da vida tem sido uma fase intensa de autoconhecimento. Passo o tempo todo me avaliando, muitas vezes de forma inconsciente. E uma das coisas que aprendi é que as mudanças que estão acontecendo na minha vida não têm origem na minha racionalidade ou na minha capacidade analítica (que sempre foram fortes características minhas), mas sim na minha maleabilidade, abertura e porosidade.

Me sinto como uma esponja, absorvendo as coisas que surgem na minha frente e me permitindo experimentar coisas novas. Aparar as minhas arestas, ser mais atento ao que acontece ao meu redor, adoçar o amargo inevitável que carregamos dentro da gente em tempos bicudos, tudo isso tem sido uma experiência formidável. Para onde vou? Eu não sei bem, mas não importa. Só sei que será para um lugar melhor do que onde estou hoje. Me sinto feliz e muito agradecido pela vida que tenho. Ansioso pelos próximos dias, meses e anos. O importante é seguir em frente.

Mauro Segura,  engenheiro e analista de sistemas, com pós-graduação em marketing e experiência profissional em tecnologia e comunicação. Colabora com os blogs Meio&Mensagem e Café Brasil, entre outros. A versão integral deste texto está em seu blog (maurosegura.com.br).

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