Os mais velhos certamente se lembram do que era ficar “pendurado no telefone”, uma atitude com potencial para deixar outras pessoas da casa irritadas, em especial quando estavam à espera de uma ligação. Hoje, ainda que cada um tenha seu próprio aparelho, o telefonema é considerado uma atitude invasiva, cada vez mais rara e muitas vezes antecedida de uma cautelosa mensagem do tipo “Posso te ligar?”.
Tanto quanto as mensagens de texto – com frequência acompanhadas de emojis, figurinhas e afins – as conversas fragmentadas se tornaram mais comuns do que as conversas ao telefone. Um áudio aqui, outro ali em resposta, e o diálogo segue pontuado por intervalos de duração variada. Paradoxalmente, nunca as pessoas se comunicaram tanto. Só que não em telefonemas, seja no antiquado aparelho fixo ou no celular.
“Estamos nos comunicando mais do que em qualquer outro período da história”, diz a jornalista especializada em cultura digital Janira Planes, em depoimento ao El País. “Uma coisa é não querer telefonar, e outra é não se expressar verbalmente.” Ela observa que o áudio é uma ferramenta totalmente integrada às diversas plataformas de comunicação e redes sociais.
Professora do Departamento de Língua da Faculdade de Comunicação da Universidade de Valladolid, na Espanha, Cristina Vela analisa a conveniência das novas formas de comunicação à distância:
“Todos nós estamos fazendo mil coisas ao mesmo tempo. Parar tudo para atender um telefonema é cada vez mais complicado. Podemos enviar um áudio enquanto esperamos na fila do supermercado e ouvir a resposta depois que tivermos colocado as compras no carro. Essa flexibilidade é muito valorizada.”
CONVERSAS ESPAÇADAS EVITAM ANSIEDADE DO TELEFONEMA
Em relações profissionais, o protocolo subentendido é que se deve priorizar mensagens por escrito, menos invasivas e mais respeitosas. Nem sempre se pode ouvir um áudio de imediato e com tranquilidade num ambiente de trabalho, ou mesmo na rua.
Na Espanha, um estudo de 2018 mostrou que 96,9% das pessoas na faixa de 14 a 24 anos preferiam o WhatsApp para se comunicar com amigos e parentes. Nos Estados Unidos, no mesmo ano, uma pesquisa da empresa de celulares BankMyCell indicou que sete em cada dez millenials – nascidos entre o início da década de 80 e o final do século passado – evitavam telefonemas e que 80% sentiam ansiedade ao dá-los ou recebê-los.
A vontade de se comunicar, esta continua existindo, mas, para além das facilidades que os novos recursos oferecem, a vontade de espaçar as conversas parece ser maior justamente por causa dessa ansiedade.
Divulgado em outubro, um estudo da equipe da psicóloga Meghan L. Meyer, da Universidade de Darmouth, em New Hampshire (EUA), indicou que o estresse anula a vontade de interagir – o que explicaria a opção de evitar a ansiedade provocada por telefonemas, sejam eles antecedidos ou não por um pedido de permissão.
Durante dois meses, a equipe de Meyer teve acesso aos microfones dos celulares de um grupo de pessoas. O intuito era relacionar a quantidade de conversa por telefone diária com níveis de estresse. “Um maior estresse em um dia predisse uma menor interação social no dia seguinte”, afirmou o estudo, indicando que o estresse fazia as pessoas perderem a vontade de falar ao telefone.
A VOZ HUMANA COMO ÚLTIMA FRONTEIRA DA INTIMIDADE
Cristina Vela lamenta que o estresse leve as pessoas a abandonar a “conversa autêntica” em tempo real, na qual os interlocutores estão disponíveis um ao outro e a cooperação é possível. A tecnologia impõe uma fragmentação da comunicação, levando as pessoas a saltar de uma ferramenta para outra de forma cada vez menos linear.
Novas formas de comunicação não param de surgir. Analistas se referem à “era do pós-texto”, marcada por mudanças no consumo de informação geradas pela integração de áudio e vídeo. E o que dizer do mecanismo de aceleração de voz disponibilizado pelo WhatsApp?
No ensaio “Real Talk”, publicado na revista Real Life, a analista de cultura visual Lauren Collee examina a transformação da voz humana num mundo de consumo fragmentado e pós-textual. Um dos focos é o TikTok, onde as pessoas tendem a esconder e alterar a própria voz. Ali, muitos influencers fazem uso de mímica, sincronização labial e sons robóticos.
Collee afirma que a mudança vocal pode estar relacionada à ideia de que a voz representa a singularidade humana diante do mundo digital e que sua alteração seria “uma pequena tentativa de conservar algo do ‘eu puro’, ou da alma, um núcleo ‘não corrompido’ pela mediação tecnológica”. A voz humana seria a última fronteira da nossa intimidade num mundo que exige que nos expressemos e sejamos vistos sem parar.
Fonte: Artigo de Noella Ramírez para o El País.
