O limite entre intolerância e censura vem sendo posto à prova pela cultura do cancelamento, ultimamente tão difundida – e contestada. A facilidade de emitir opinião, proporcionada pela internet, acaba resultando em avalanches de vozes e, por conseguinte, de interpretações. Mas o que acontece no cancelamento é que basta alguém apontar um suposto malfeito de outro alguém para uma multidão abraçar a causa e partir para a ação de limar definitivamente o suposto malfeitor da face da mídia, e fora dela também – há casos de perda de emprego como consequência.
Discordar pode ser saudável, mas existe saúde na condenação pública – e no linchamento virtual? Onde acaba a liberdade de expressão e onde começa a repressão? Não estaríamos abrindo mão de nossa capacidade humana de tolerar quem pensa diferente? Ou de perdoar aquele que erra? Quem nos dá o direito de julgar? O cancelamento pode ganhar contornos de perseguição, alimentando uma cultura de ódio.
No Brasil, um exemplo típico de cancelamento foi o que aconteceu com a blogueira Gabriela Pugliesi. A quarentena estava ainda começando quando ela postou fotos de uma festa em casa. A patrulha da internet a condenou sem piedade pelo ato clara ou supostamente inconsequente. Gabriela perdeu não apenas milhares de seguidores, mas também patrocínios e contratos de publicidade, amargando prejuízos que estariam na casa dos 2 milhões de dólares.
No caso do editor de opinião do New York Times, James Bennet, a detração acabou lhe custando o próprio cargo, por publicar um artigo de um senador republicano que defendia a ação do exército para reprimir manifestações pelos direitos dos negros. Ou seja, pessoas em guerra contra a intolerância racial adotaram uma postura intolerante – ainda que supostamente justificada – contra um profissional que ousou dar voz a uma opinião discordante, ainda que intolerante.
RECEITA PARA DISCORDAR SEM SER CANCELADO
A multiplicação de casos de cancelamento levou um grupo de 150 intelectuais, cientistas e artistas a publicar na americana Harper’s Magazine uma carta aberta “sobre justiça e debate aberto”. Nomes como Noam Chomsky, Salman Rushdie e J. K. Rowling afirmaram que “a livre troca de informações e ideias, força vital de uma sociedade, está se tornando cada vez mais restrita.” Acabaram provocando a ira de outro grupo que, em reação, também escreveu uma carta para acusá-los de privilegiados que ignoram “as dificuldades de minorias, como negros e a população LGBT, no debate público”.
Em recente entrevista ao Globo, o jornalista americano Gay Talese opinou: “Acho que essa atmosfera em que apenas um lado detém a definição de ‘virtude’, ‘retidão’ e ‘igualitarismo’ é uma tendência perigosa e contrária aos princípios democráticos.”
Já o espanhol El País chegou a publicar um artigo intitulado “Como aprender a discordar sem cair nas garras da cultura do cancelamento”. A receita passa pela maneira de expressar uma discordância: “Devemos ser flexíveis, ter empatia ao outro, usar a sedução e deixar claro que as ideias expressadas também trazem benefício ao interlocutor.”
Em artigo na Época, o jornalista Hugo Gurovitz citou o seguinte trecho do livro The Tyranny of Virtue, de Robert Boyers: “Supusemos por muito tempo que as sociedades liberais devem ser defendidas justamente porque estão comprometidas com o pluralismo e o choque de ideias. Apesar disso, avançamos em várias frentes rumo ao que diversos pensadores chamam de ‘regimes missionários’, promovendo o que julgam ser ‘valores avançados’. O próprio Gurovitz emendou: “Qual a diferença para a polícia do pensamento no totalitarismo?”
A cultura do cancelamento transparece – e reforça – a polarização atualmente tão presente em posições políticas. E essa polarização parece remar contra a possibilidade de entendimento entre forças antagônicas. É na resiliência – para usar outra palavra em voga – que pode estar o caminho para a saúde das relações. É quando dois lados opostos cedem que ambos se permitem crescer. Essa ideia nada tem de nova, mas parece que anda difícil aplicá-la.
Bruno Casotti é jornalista e tradutor.