Manifestações de indignação provocadas por morte de americano em abordagem policial unem diversidade de vozes
O mundo se tinge de preto diante da morte do americano George Floyd e dá provas de que pode se unir em torno da busca de dignidade para o ser humano. Por um lado, é desanimador constatar que o racismo persiste como um cancro na história da sociedade humana, fazendo-nos questionar nossa própria qualidade de humano. Por outro, a disseminação dos protestos é um alento: mostra uma imensa diversidade de vozes solidárias mobilizadas contra a discriminação racial e a violência.
Passados 157 anos da abolição da escravatura nos EUA – e 132 anos no Brasil – muitos poderiam imaginar que em 2020 o racismo seria coisa superada. Mas o ódio racial ainda responde por crimes que geram revolta nas mais distintas comunidades e nos levam a perguntar: que mundo é esse? “Ninguém pode fechar os olhos ao racismo e à exclusão”, disse o Papa Francisco, fazendo coro com uma multidão de autoridades e cidadãos comuns que demonstrou indignação com a morte de Floyd.
O ex-segurança Floyd foi detido em 25 de maio, em Minneapolis, por ter supostamente usado uma nota de vinte dólares num supermercado. Passou oito minutos e 46 segundos imobilizado por um policial branco que pressionava o joelho contra seu pescoço. Repetiu 16 vezes que não conseguia respirar, mas acabou morrendo asfixiado. Gravada em vídeo, a cena viralizou e provocou uma onda de protestos que se espalhou pelo mundo, chegando a lugares tão díspares quanto Brasil, México, Síria, Austrália, Canadá e Polônia – para citar um dos muitos países da Europa.
Telas negras em protesto
A duração do sofrimento de Floyd se tornou um endereço na internet – 8m46s.com – que convida os visitantes a parar durante esse tempo e pensar. Canais de TV se solidarizaram saindo do ar por oito minutos e 46 segundos. As últimas palavras do americano – “Não consigo respirar” – foram reproduzidas em cartazes. E as redes sociais ficaram coalhadas de telas pretas postadas em protesto contra sua morte, fortalecendo o movimento #BlackLivesMatter (vidas negras importam).
Em seu livro Is Racism an Enviromental Threat? (Polity Press, 2017), o antropólogo libanês-australiano Ghassan Hage afirma que tanto o racismo quanto a relação destrutiva da humanidade com o meio ambiente se originam do mesmo modo de habitar o mundo: uma força ocupante que impõe seus interesses como lei, subordinando os outros para extrair valor e erradicando e exterminando o que encontra pelo caminho.
Respeito e amor às diferenças
Embora Hage use a islamofobia como referência, sua análise se aplicaria a todo tipo de racismo. Segundo ele, nos espaços do ativismo, o desafio de ambas as lutas – contra o racismo e pelo meio ambiente – é deixar de ver a diversidade, humana ou não, como algo que existe apenas para ser administrado.
Sua análise encontra eco no pensamento do líder indígena Ailton Krenac, que em Ideias para adiar o fim do mundo (Companhia das Letras, 2019) questiona a atitude humana de ver o planeta como algo em separado, e não como um todo ao qual pertence. “Somos mesmo uma humanidade?”, questiona ele, referindo-se a um mundo onde os excluídos formam uma grande maioria.
Krenac afirma ainda: “Definitivamente, não somos iguais, e é maravilhoso saber que cada um de nós que está aqui é diferente do outro, como constelações. O fato de podermos compartilhar esse espaço, de estarmos juntos viajando, não significa que somos iguais; significa exatamente que somos capazes de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças, que deveriam guiar o nosso roteiro de vida.”
Ainda que a persistência do racismo no mundo nos revolte, as manifestações generalizadas contra esse ódio sinalizam nossa disposição para respeitar – e amar – as diferenças e olhar o outro como irmão. Quiçá seja esse um caminho para entendermos que somos todos igualmente – e diversamente – humanos e que somos todos o próprio mundo onde vivemos.
Bruno Casotti é jornalista e tradutor.