O padrão sono-vigília é uma característica fundamental da biologia humana – uma adaptação à vida num planeta que gira em torno do próprio eixo, numa incessante sequência de dias e noites.
Recentes pesquisas mostram que, quando esse ritmo circadiano se desorganiza, aumenta o risco de ocorrência de diabetes, doenças cardíacas e demência.
No entanto, hoje em dia, vivemos todos num estado de desequilíbrio entre o nosso estilo de vida e o ciclo solar. O brasileiro tem uma das noites de sono mais curtas do mundo, ao lado de cingapurianos e japoneses, apontou um estudo de 2016. Isso se deve, sobretudo, à onipresença de luzes, televisores, computadores e celulares. Em nossa sociedade irrequieta e sempre iluminada, muitas vezes consideramos o sono um adversário, um estado indesejável que nos impede de sermos mais produtivos ou de nos divertirmos mais. O próprio Thomas Edison, o inventor das lâmpadas elétricas, afirmava que “o sono é uma insensatez, um hábito deplorável”.
O nosso ânimo depende da interação de dois processos: o da “pressão para dormir”, que se acredita ser criada por substâncias promotoras do sono que vão se acumulando no cérebro durante as horas de vigília, e o do ritmo circadiano, o nosso relógio interno, que mantém o cérebro e o corpo em sincronia com o sol. Esse relógio pode ser adiantado ou atrasado por meio da iluminação. Somos particularmente sensíveis à luz azulada, o tipo que se vê ao meio-dia e nas telas de computador, mas ela também pode desorganizar o nosso ciclo – sobretudo à noite, quando a escuridão nos sinaliza a necessidade de adormecer.
Quanto mais azulada e brilhante a luz, é mais provável que bloqueie a liberação da melatonina e altere o ciclo do sono – em especial, se ficamos expostos a ela à noite, diante das telas eletrônicas.
Hoje, uma noite inteira de descanso parece tão rara e antiquada quanto uma carta manuscrita. Numa noite bem-sucedida de sono, repetimos quatro ou cinco vezes um ciclo com várias etapas, cada qual com características e propósitos distintos – cumprindo uma viagem sinuosa, e até surrealista, por um universo paralelo.
Ao adormecermos, o nosso cérebro permanece ativo e dá início a um processo de edição, decidindo quais memórias serão preservadas e quais serão descartadas.
A mudança ocorre com rapidez. O corpo humano não aprecia a demora entre o estado da vigília e o do sono. Por isso, apagamos as luzes, deitamos na cama e fechamos os olhos. Se o nosso ritmo circadiano está adaptado à sucessão diária de luz e escuridão, se a glândula pineal na base do cérebro está produzindo melatonina e sinalizando que chegou a noite e, ainda, se vários outros sistemas se acham alinhados, então os nossos neurônios logo entram no novo ritmo.
Portanto, durante o sono, o cérebro não fica menos ativo, como se pensava, mas continua ativo de forma distinta.
Durante a vigília, o cérebro fica empenhado ao máximo em captar os estímulos externos; no repouso mental, ele se concentra em consolidar as informações coletadas. À noite, portanto, deixamos de lado a atividade de gravação e passamos à de edição, uma mudança perceptível em escala molecular. Não se trata apenas de um arquivamento rotineiro dos nossos pensamentos: no sono, o cérebro seleciona as lembranças a serem guardadas e aquelas a serem eliminadas.
Nem sempre o cérebro faz boas escolhas. O sono reforça a nossa memória de forma tão poderosa que talvez fosse melhor, por exemplo, que os policiais ou soldados que voltam exaustos de missões difíceis não fossem logo para a cama. Para evitar os distúrbios de estresse pós-traumático, eles deveriam ficar acordados por outras seis a oito horas, alerta a neurocientista Gina Poe. Pesquisas feitas por ela indicam que dormir logo após um evento importante, antes que, ao menos em parte, a experiência seja processada, cria condições favoráveis para que o ocorrido seja convertido em memória de longo prazo.
“Ficar acordado é um esforço”, diz Thomas Scammell, professor de neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade Harvard. “Você tem de se colocar no mundo e superar todos os outros organismos a fim de sobreviver, e a consequência disso é que precisa de um período de descanso para que as células se recuperem.” Isso ocorre sobretudo durante o sono profundo.
Também há indícios de que o sono é indispensável para a manutenção de um sistema imunológico saudável, da temperatura corporal e da pressão sanguínea. Quando não dormimos o bastante, não temos como regular bem o nosso ânimo nem nos recuperar de ferimentos. O sono pode ser mais importante que o alimento.
É provável, ainda, que um bom sono reduza o risco de desenvolvermos algum tipo de demência ou mesmo uma doença como o Alzheimer.
Mesmo quem costuma dormir bem acaba despertando várias vezes por noite, embora a maioria não se dê conta disso, pois volta a dormir em questão de segundos. Contudo, nessa altura, em vez de repetir a sequência de estágios, o cérebro parte para algo novo – uma viagem rumo a um domínio verdadeiramente bizarro.
Nos Estados Unidos, mais de 80 milhões de adultos sofrem hoje de falta de sono crônica, ou seja, dormem menos que o mínimo recomendado, de sete horas, por noite. A consequente fadiga é um fator relevante em mais de 1 milhão de acidentes de carro a cada ano, bem como numa quantidade significativa de erros médicos. Mesmo pequenos ajustes no sono podem ser problemáticos.
Ao longo da vida, cerca de um terço das pessoas vai ser acometida de ao menos um distúrbio do sono diagnosticável. Tais distúrbios variam desde a insônia crônica, passando pela apneia do sono, até a síndrome das pernas inquietas, além de outras condições bem mais raras e estranhas.
De longe, porém, o problema mais comum é a insônia. Se o sono é um fenômeno natural tão onipresente, é o caso de se perguntar: por que tantos de nós temos problemas para dormir? A culpa é da evolução – e do mundo moderno. Ou, melhor, da incompatibilidade entre ambos.
A evolução nos dotou, como aos outros animais, de flexibilidade quanto ao momento em que podemos dormir e, também, interromper o sono – de modo que este pode ser subordinado a outras prioridades. O cérebro conta com um sistema de alerta, atuante em todos os estágios do sono, que nos desperta assim que percebe uma emergência – o choro de uma criança ou a pisada de um predador que se aproxima.
O problema é que, no mundo moderno, esse mecanismo ancestral e inato de alerta é constantemente acionado por situações que estão longe de pôr em risco a nossa vida, como a ansiedade antes de um exame ou a preocupação com as contas a pagar.
E, se você é um daqueles que conseguem pegar no sono em qualquer lugar, não há nisso nenhum motivo para se vangloriar – é um sinal claro de que tem uma enorme carência de sono.
Quando não dormimos o suficiente, a primeira área do cérebro que começa a falhar é o córtex pré-frontal, que nos permite tomar decisões e resolver problemas. Aqueles que dormem menos do que deveriam são mais irritáveis e irracionais.
Qualquer pessoa que costuma dormir menos de seis horas por noite corre um risco aumentado de depressão, psicose e derrame. A falta de sono também tem ligação direta com a obesidade: quando se dorme menos que o necessário, o estômago e outros órgãos produzem mais grelina, conhecida como “hormônio da fome”, o que nos leva a comer mais do que precisamos.
Quando estamos despertos, o cérebro se ocupa com as suas atividades cotidianas. Contudo, quando dormimos, o órgão mais requintado e complexo que se conhece fica livre para fazer o que deseja. Ele ativa a si mesmo. E sonha. Dá até para dizer que esse é o momento em que o cérebro se diverte.
Talvez, desde Aristóteles, a gente tenha colocado a questão errada sobre o sono. O mais intrigante não é saber por que dormimos. É entender por quê, tendo acesso a uma alternativa tão incrível, preferimos ficar acordados.